Já era hora de voltar. Estava perambulando por Volgogrado há cerca de três dias. Tinha visitado o Museu Panorâmico da Batalha de Stalingrado, molhado as minhas mãos no Rio Volga, caminhado pelas ruas onde ainda existiam postes de ferro crivados de balas e estilhaços, visto a antiga loja Univermag e ali, o local onde Paulus tinha sido capturado.
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Os restos do moinho de Stalingrado. |
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Postes furados por estilhaços e balas estão por toda parte. |
Lá estavam também as ruínas do moinho, o Memorial do Soldado Panikhaha, a colina Mamayev Kurgan com a sua gigantesca estátua da Mãe Pátria, a Casa Pavlov, e ainda a estação ferroviária. Enfim, um mergulho inesquecível na história desta batalha decisiva da II Guerra Mundial. Entretanto ainda tinha mais um objetivo.
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Rio Volga. |
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Museu Panorâmico da Batalha de Stalingrado. |
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Diorama no museu. |
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Memorial do Soldado Panikhaha. |
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Mãe Pátria no topo do Mamayev Kurgan. |
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Loja da Univermag. |
Fui até o mercado das pulgas da cidade. Buscava um capacete de aço alemão tamanho grande. Não encontrei, mas vi um grupo de “garimpeiros do campo de batalha” e encomendei o que queria. O russo, esperto como um cigano,pediu 24 horas e no outro dia lá estava o meu capacete, um M40, tamanho grande. Desenterrado há não muito tempo, incrustado com a terra marrom e cheirosa do solo por onde tinha manobrado o 4º Exército Panzer e avançado o 62º Exército de Chuikov no final de 1942. Minha nossa, um verdadeiro tesouro!
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Um capacete M40 desenterrado do campo de batalha. Um verdadeiro tesouro pra mim. |
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Ainda com a escura e cheirosa terra da Mãe Pátria encrustada no aço. Que história ele poderia nos contar. |
Embarquei no meu trem na velha estação, local onde haviam acontecido combates terríveis durante a batalha, tendo a sua posse trocado de mãos por 15 vezes. Um trem velhusco, meio comunista, um tanto hollywoodiano, mas glamuroso. Era uma longa viagem de 20 horas até Moscou. Os camarotes sem portas e com bancos que se tornavam camas, comportavam quatro passageiros e ficavam à direita do vagão. Havia o corredor e no outro lado uma coluna de assentos com mesas e camas. Exatamente como nos filmes de espionagem no leste europeu.
Achei o meu camarote. Iria compartilhar a viagem com duas moças, Svetlana e Irina. No início ficaram desconfiadas comigo, um tanto reservadas. Logo viram que eu era um estrangeiro; contudo, uma hora de viagem naquele minúsculo espaço bastou para derreter o gelo. Svetlana falava bem um inglês básico e logo começamos a conversar. As duas voltavam de um concurso de unhas (!) realizado em Volgogrado e, inclusive, tinham ganhado um troféu que mostravam com orgulho a cada momento. Puxa vida, um concurso de unhas naquela cidade – unhas pintadas – isto faria Vassili Grigoryevich Zaitsev revirar no seu túmulo.
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No interior do trem. |
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Irina e Svetlana pegam mais cerveja. |
Logo deu para ver que eram um simpático casal gay e, como todas as russas(os), adoravam beber. Não deu outra: logo passou um carrinho pleno de bebidas, com muita vodka, cerveja e vinho. As meninas pegaram umas 10 garrafas de cerveja (!) e muito rapidamente, o clima mudou para melhor no nosso camarote.
Entretanto, a conversação em inglês parece que perturbava as pessoas que estavam em volta, a maioria também bebendo. Depois notei que alguns passageiros, homens enormes, mal vestidos, estavam ficando irritados. Parece que mais ainda quando as duas moças foram tirar uma soneca na cama, uma agarrada na outra.
O trem prosseguia. Atravessávamos extensas planícies onde raramente surgia uma ou outra aldeia. Um horizonte sem fim. Depois florestas de bétulas intermináveis. Imaginei-me em 1942, um ferido alemão, um pobre diabo sendo evacuado em um trem-hospital para a Alemanha. Estas florestas deviam fervilhar de guerrilheiros que adoravam explodir um trem e degolar os feridos, um a um, bem devagarzinho, com uma lâmina sem fio. Que coisa!
Lembrei-me da descrição feita por Otto Skorzeny em suas memórias quanto a alma russa: “...é profunda, variável e espantosa. Exatamente igual às suas imensas estepes, aos seus gigantescos rios, às inclemências do seu clima e a angustiante visão da solidão de suas paisagens”.
Fui até o banheiro do vagão. A cerveja agora queria sair. Acionei a descarga e aconteceu um chiado medonho, uma portinhola no fundo do vaso abriu e tudo caiu nos trilhos! Sim, vi os dormentes desfilarem pelo buraco. Estupefato, voltei para o meu assento. Algumas pessoas dormindo com os pés no corredor atrapalhavam a passagem.
Um velhote de cueca samba-canção, camiseta regata branca e sandálias com meias, comia com indisfarçável prazer um peixe seco sobre a folha de um jornal. Pelo caminho alguns russos já bêbados me interpelavam de forma quase agressiva. Todos fortes, grandes, vestidos com extremo mau gosto. Voltei para as gurias. Eram alegres. Tinham grande curiosidade pelo Brasil. Perguntavam muito sobre a “Escrava Isaura” (é incrível, mas as novelas da Globo têm uma enorme audiência por lá), por que ela era branca, como foi a escravatura no Brasil, etc. Até detalhes sobre “O Astro” queriam saber. Fiz o possível para explicar-lhes.
Era já no entardecer quando o trem parou em uma pequena vila perdida naquela imensidão. Haveria a troca da locomotiva. Saí para esticar as pernas e na plataforma fui cercado por vários russos do meu vagão que, aparentemente, queriam confraternizar. Tapas fortes nas costas, gargalhadas, empurrões, safanões e bafos de tigre. Afirmavam a todo momento:
-Americanish, americanish! Rá, rá, rá, rá! (era o som que eu entendia)
-Não, não, sou brasileiro!
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Parada para troca de locomotiva: no meio dos gorilas. |
Tinha comigo um texto escrito em alfabeto cirílico, obra do adido militar brasileiro da nossa embaixada em Moscou, que dizia ser eu um militar do Exército Brasileiro, passaporte número tal, pesquisador de história militar, servindo em um museu militar e que estava visitando aquele amável país para conhecer a história da Grande Guerra Patriótica, blá, blá, blá.
No outro lado da folha plastificada a minha foto fardado, com um meio sorriso idiota e a bandeira do Brasil. Mostro a eles. Não adianta. Meu Deus, e se o coronel da aditância tivesse escrito ali para me sacanear que eu era um nazista, agente da CIA ou um estuprador de velhinhas bolcheviques!
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Frente do Salvo-Conduto. |
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Verso do Salvo-Conduto. |
Acho que não faria isto.
-Americanish! Americanish!
-Americanish porra nenhuma! Brasilianish! Brasilianish!
-Rá, rá rá rá!
Mais tapões nas costas. Sacudidas. Que merda!
O trem apita e, aproveitando o momento, consigo me desvencilhar dos gorilas e entro rápido no vagão. Volto ao camarote. Lá estão as gurias comendo sementes de girassol e bebendo cerveja.
Já é noite quando a nova e descansada locomotiva começa a puxar os vagões. O trem prossegue naquela vastidão, parece uma viagem interminável.
Em volta, mais comentários sobre a minha nacionalidade e o comportamento do casal. Foi então que a Svetlana, pressentindo todo aquele clima azedo, determinou que eu fosse para a cama e dormisse:
-Néstor, go to bed and sleep right now!
Bem, sem escolha, obedeci na hora e fiquei ali meio que encolhido, ainda ouvindo os comentários à volta, sem entender nada, isto até o sono chegar. E se os gorilas partisans nos jogassem para fora do vagão? Nossos cadáveres mumificados levariam anos para serem encontrados.
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Após 20 horas de viagem, a chegada a Moscou. |
Já era dia quando o trem entrou na estação de Moscou. Respirei aliviado, despedi-me das moças, agradeci a sua simpatia e, rapidamente, sai do vagão, infiltrando-me na imensa multidão. Acho que estava salvo.
Nestor