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Histórias do Nestor: Situação pastosa na Praça Vermelha

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Pois foi em uma manhã morna e luminosa do verão russo que pousei em Moscou.

Estava retornando da Turquia, onde havia realizado uma série de mergulhos no naufrágio do U-20, um U-Boot Tipo II que havia sido afundado pela própria tripulação em 1944 ao largo de Karasu, Mar Negro. Agora, os meus objetivos na Rússia eram visitar o Museu Central da Guerra Patriótica e o Museu Central das Forças Armadas. Também queria conhecer o famoso Museu dos Tanques em Kubinka e o Museu Panorâmico da Batalha de Stalingrado, este último sediado na atual Volgogrado.

Contudo, eu tinha uma tarde livre para, naturalmente, visitar a Praça Vermelha. Naquele dia eu estava junto com um estudante brasileiro, o Lucas, filho de um Coronel do Exército Brasileiro, que estudava com uma bolsa na Universidade de Moscou. Ele era fluente em russo e também o meu fiel guia naquela ocasião.

Era um local impressionante, com história por toda a parte. Ali estavam, entre muitas coisas fantásticas, as muralhas do Kremlin, a Catedral de São Basílio e o Mausoléu de Lenin. Lembro ainda dos desfiles militares que aconteceram e acontecem ali, naquele piso de paralelepípedos polidos. Minha nossa!

Mausoléu de Lenin e as muralhas do Kremlin.

Túmulo do Soldado Desconhecido.

Fomos até o Túmulo do Soldado Desconhecido, um local solene, pungente, que nos transmite um sentimento de heroísmo e eternidade. As sentinelas sendo rendidas com aquele passo onde o pé vai lá em cima e o movimento de braço alcança o pescoço. O queixo erguido, alamares dourados. As carabinas Simonov na vertical, tangenciando o ombro.

Observei então que existia uma multidão de pessoas paradasà frente do monumento. Eram barradas por uma corrente, não podendo chegar até a chama eterna do túmulo. Contudo, quem se apresentava com uma flor na mão tinha a sua passagem liberada pelos guardas e podia ir até o ponto central do memorial.

"Obtendo" a rosa mais bonita, naturalmente vermelha.

Sentinela no Túmulo.

Huummmm. Não deu outra: com muito cuidado, furtei a rosa maior e mais bonita, naturalmente vermelha, que enfeitava sobre outro monumento, um muro baixo onde estavam escritas as datas de 1941, algo em russo e 1945.

Evitando encarar os guardas, sem movimentos bruscos e segurando ostensivamente a rosa, passei por sobre a corrente e fui até a chama. Ali fiz uma oração e depositei a flor.

Junto à Chama Eterna.

Depositando a rosa.

Foi neste momento que escutei um clamor nas minhas costas, um sussurro forte, quase uma lamúria de uma centena de pessoas. Voltei-me. Bem à frente da multidão, junto à linha da corrente, estava o meu guia, pálido como papel, preocupadíssimo. Foi então que eu lembrei que estava vestindo uma blusa de combate camuflada alemã, com uma bandeirinha em cada ombro e dois grandes patches, um do U-853 com o insígnia da U-Bootewaffe(águia com submarino e suástica) e o outro do U-353, bordados bem no peito.

-Nestor, pelo amor de Deus, sai de fininho, bem devagar, não olhes nos olhos de ninguém. Mantenha a cabeça baixa.

-Mas...mas...mas...Lucas, o que aconteceu?

-Seu infeliz, olhas como tu estás vestido! O murmúrio geral desta multidão é que tu és um neto ou filho arrependido de um porco nazista, um dos milhões que invadiram a Mãe Pátria em 1941 e que trouxeram tanta desgraça. Viestes aqui expiar pelos pecados do teu ancestral.

Vejo o meu guia branco como cera.

Misericórdia! Só então caiu a ficha. Senti-me como um veterano da 1ª SS Divisão Panzer-SS Leibstandarte Adolf Hitler passeando na Praça Vermelha em 1943, depois da Batalha de Kharkov!

Pois é, Júlio e meus amigos aqui da Sala de Guerra, saímos lentamente, sem olhar para trás, cabeça baixa, de fininho e sem responder a nenhuma das pessoas realmente incomodadas que nos interpelavam. Caminhando cada vez mais rápido, fui tirando a farda e só me senti seguro quando embarquei no metrô, direto para o hotel. Que coisa!

Um apoio inestimável: com Lucas, o guia.

Nestor Magalhães

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